segunda-feira, 25 de janeiro de 2016

Em grego e português, palingenesia é sinônima de reencarnação





José Reis Chaves

Muita gente fala que não crê na reencarnação, porque ela não está na Bíblia. Muitos fiéis encabrestados mentalmente pelos seus líderes religiosos são doutrinados assim, falando isso para os quatro ventos. E dizem-no de modo eufórico como se fosse uma hipótese inquestionável. Porém, independentemente de a reencarnação estar na Bíblia ou não, ela é uma grande verdade com o respaldo de vários segmentos científicos. Mas até que ela está sim na Bíblia como veremos.

Para os leitores desta coluna e dos seus comentários no portal de O TEMPO não caírem na conversa de líderes religiosos contrários à reencarnação, vejam vocês mesmos a origem da palavra bíblica grega “palingenesia”, que, para a ciência, principalmente linguística, é sinônima de reencarnação. Ela vem de dois vocábulos gregos: “palin” (de novo) e “gênesis” (geração), o que quer dizer “regresso à vida depois da morte”, ou seja, “de novo em geração”. É o espírito “em nova geração”, isto é, a mesma identidade espiritual em nova reencarnação.                        E “palingenesia” até passou para outras línguas, como o português, com a sua mesma forma original bíblica ou com pequenas modificações, como no francês: “palingénésique”.



"Assim como a alma encarnada passa continuamente, neste corpo, da infância à juventude e à velhice, 

a alma passa da mesma forma a outro corpo após a morte.                                                                        

A alma auto-realizada não se confunde com tal mudança." - 

Bhagavad Gita - Capítulo II - Verso 13 

Respeitamos o dogma que proclamou que a ressurreição é do espírito com sua carne. Vejamos dois tipos de ressurreições: uma é do espírito no mundo espiritual, quando a pessoa morre: “Pai, em tuas mãos entrego meu Espírito” (Lucas 23: 46); e “Ao morrer o homem, seu corpo volta ao pó que o deu, e seu espírito volta a Deus que o deu” (Eclesiastes 12:7). E o maior teólogo católico atual, André Torres Queiruga (“Repensar a Ressurreição”), defende essa tese. E a outra ressurreição (outras), no mundo físico, acontece toda vez que o espírito reencarna. Não é, pois, a ressurreição “da carne”, mas “na carne”!


A palavra “palingenesia” aparece, duas vezes, nos originais gregos bíblicos do Novo Testamento: “... quando na ‘palingenesia’ (reencarnação)...” (são Mateus 19: 28); e eis a outra: “Quando, porém, se manifestou a benignidade de Deus..., ele nos salvou mediante o banho, o lavar regenerador da ‘palingenesia’ (reencarnação) e ou renovador de (o) Espírito Santo,” de um espírito santo no original grego (Tito 3: 5). Em algumas traduções, o artigo definido “o” até vem entre parênteses, exatamente por ele não existir no texto bíblico em grego, o que, então, exige o artigo indefinido “um” nas traduções. O banho renovador ou purificador é, pois, de “um” espírito santo do indivíduo (e não o Espírito Santo trinitário), banho esse que acontece exatamente durante o período da “palingenesia” ou das reencarnações, as quais são justamente para a purificação, perfeição e evolução do espírito.
E a prova de que “palingenesia” significa mesmo reencarnação é que os tradutores, numa das maiores falsificações da Bíblia, alteraram a sua significação de “reencarnação” ou “renascimento” para a de “regeneração”. Vai haver regeneração, sim, mas depois de muitas reencarnações ou gerações do espírito, para o devido aperfeiçoamento ou o banho renovador do espírito durante o período da “palingenesia”.






Em muitos textos bíblicos, os tradutores e teólogos fizeram adaptações para esconder a ideia da reencarnação e para a aprovação de novas doutrinas. Mas essa falsificação de “palingnesia” por regeneração para esconder o significado de reencarnação de “palingenesia” é demais!


sexta-feira, 22 de janeiro de 2016

O mito de Héstia, que representa nosso centro, o do lar e o da Terra


Leonardo Boff 

Atualmente, há toda uma nova forma de interpretar os velhos mitos gregos e de outros povos. Em vez de considerar os deuses e as deusas entidades subsistentes, agora cresce a hermenêutica, especialmente após os estudos do psicanalista Jung e de seus discípulos Hillman, Neumann, Paris e outros, segundo a qual conceitos abstratos não conseguem expressá-los.


Um desses mitos é o da deusa Héstia, filha de Cronos (o deus do tempo e da idade de ouro) e de Reia, a grande mãe, geradora de todos os seres. Héstia representa nosso centro pessoal, o centro do lar e o centro da Terra, nossa Casa Comum. É virgem, não por desprezar a companhia do homem, mas para poder, com maior liberdade, cuidar de todos os que se encontram no lar.
Héstia significa, em grego, a “lareira com fogo aceso”: aquele lugar ao redor do qual todos se agrupam para se aquecerem e conviverem. Portanto, é o coração da casa, o lugar da intimidade familiar, longe do tumulto da rua. Héstia protege, dá segurança e aconchego. Além disso, a ela cabem a ordem da casa e a chave da despensa, para que sempre esteja bem fornida para familiares e hóspedes.

Nas casas gregas e romanas, mantinha-se sempre um fogo aceso para expressar a presença protetora de Héstia. Se o fogo se apagasse, era presságio de alguma desgraça. Também não se começava a refeição sem fazer um brinde a ela.

Héstia significava, também, aquele canto para onde alguém se recolhe para estar só, ler seu jornal ou um livro e fazer uma meditação. Cada um tem o seu “lugarzinho” ou sua cadeira preferida. Para saber onde se encontra a nossa Héstia, devemos nos perguntar quando estamos fora de casa: qual é a imagem que melhor lembra o nosso canto? Aí está o centro existencial da casa. Sem a Héstia, a casa se transforma num dormitório ou numa espécie de pensão gratuita, sem vida. Com a Héstia há afeição, bem-estar e o sentimento de estar “finalmente em casa”.

Héstia era por todos venerada e, no Olimpo, a primeira a ser reverenciada. Júpiter sempre defendeu sua virgindade contra o assédio sexual de alguns deuses mais assanhados.

A nossa cultura patriarcal e a masculinização das relações sociais tornaram Héstia grandemente enfraquecida. As mulheres fizeram bem em sair de casa, desenvolver sua dimensão de “animus” (capacidade de organizar e dirigir). Mas tiveram que sacrificar, em parte, a sua dimensão de Héstia. Levaram para o mundo do trabalho as virtudes principais do feminino: o espírito de cooperação e o cuidado que tornaram as relações menos rígidas. Mas chega o momento de voltar para casa e de resgatar Héstia.

Ai da casa desleixada e desordenada! Aí emerge a vontade de que Héstia se faça presente para garantir a atmosfera boa, íntima e familiar. Esta não é apenas tarefa da mulher, mas também do homem. Por isso, em todo homem e em toda mulher, deve-se equilibrar o momento de Hermes, o estar fora de casa para trabalhar, com o momento de Héstia, o de voltar ao centro e ter seu refúgio e aconchego.

Hoje, por mais feministas que sejam as mulheres, elas estão resgatando essa fina dosagem vital.
Héstia também designava o centro da Terra, onde está o fogo primordial. Se a Terra não é mais o centro físico do universo, ela continua sendo o centro psicológico e emocional. Aqui vivemos, nos alegramos, sofremos e morremos. Mesmo viajando aos espaços exteriores, os astronautas sempre revelavam ter saudades da Mãe Terra, onde tudo o que é significativo e sagrado está aqui.

Temos que resgatar Héstia, protetora da Casa Comum, manter seu fogo vivo e conferir-lhe sustentabilidade. Não estamos lhe rendendo as honras que merece, e ela nos envia seus lamentos com o aquecimento global e as calamidades naturais.



Héstia significa deusa da lareira. Da mesma família etimológica que o latim Vesta (Vesta), cuja fonte é o indo-europeu wes, “queimar”, “passar pelo fogo, consumir”. Héstia é a lareira em sentido estritamente religioso ou, mais precisamente, é a personificação da lareira colocada no centro do altar; depois, sucessivamente, da lareira localizada no meio da habitação, da lareira da cidade, da lareira da Grécia; da lareira como fogo central da terra; enfim, da lareira do universo. E, embora Homero lhe ignore o nome, Héstia certamente prolonga um culto pré-helênico do lar.
Se bem que muito cortejada por Apolo e Poseidon, obteve de Zeus a prerrogativa de guardar para sempre a virgindade. foi ininterruptamente cumulada de honras excepcionais, não só por parte de seu irmão caçula, mas de todas as divindades, tornando-se a única deusa a receber um culto em todas as casas dos homens e nos templos de todos os deuses. Enquanto os outros Imortais viviam num vaivém constante, Héstia manteve-se sedentária, imóvel no Olimpo. Assim como o fogo doméstico é o centro religioso do lar dos homens, Héstia é o centro religioso do lar dos deuses. Essa imobilidade, todavia, fez que a deusa da lareira não desempenhasse um papel algum no mito. Héstia permaneceu sempre mais como um princípio abstrato, a Idéia da Lareira, do que como uma divindade pessoal, o que explica não ser a grande deusa necessariamente representada por imagem, uma vez que o fogo era suficiente para simbolizá-la.
Personificação do fogo sagrado, a deusa preside à conclusão de qualquer ato ou conhecimento. Ávida de pureza, ela assegura a vida nutriente, sem ser ela própria fecundante. É preciso observar, além do mais, que toda realização, toda prosperidade, toda vitória são colocadas sob o signo desta pureza absoluta. Héstia, como Vesta e suas dez Vestais, talvez simbolizem o sacrifício permanente, através do qual uma perpétua inocência serve de elemento substitutivo ou até mesmo de respaldo às faltas perpétuas dos homens, granjeando-lhes êxito e proteção.
Quanto ao fogo propriamente dito, a maior parte dos aspectos de seu simbolismo está sintetizada no hinduísmo, que lhe confere uma importância fundamental. Agni, Indra e Sûrya são as “chamas” do nível telúrico, do intermediário e celestial, quer dizer, o fogo comum, o raio e o sol. Existem ainda dois outros: o fogo da penetração ou absorção (Vaishvanara) e o da destruição, que é um outro aspecto do próprio Agni.
Consoante do I Ching, o fogo corresponde ao sul, à cor vermelha, ao verão, ao coração, uma vez que ele, sob este último aspecto, ora simboliza as paixões, particularmente o amor e o ódio, ora configura o espírito ou o conhecimento intuitivo. A significação sobrenatural se estende das almas errantes, o fogo-fátuo, até o Espírito divino: Brahma é idêntico ao fogo (Gîta, 4,25).
O simbolismo das chamas purificadoras e regeneradoras se desdobra do Ocidente aos confins do Oriente. A liturgia católica do fogo novo é celebrada na noite de páscoa. O divino Espírito Santo desceu sobre os Apóstolos sob a forma de línguas de fogo. Tanto no Antigo quando no Novo Testamento, o fogo é elemento que purifica e limpa, tornando-se, destarte, o veículo que separa o puro do impuro, destruindo eventualmente este último. Por isso mesmo, o fogo é apresentado como instrumento de punição e juízo de Deus (Salmos 50:3; Marcos 9:49; Tiago 5:3; Apocalipse 8:9). Cristo fala de um fogo que não se apagará (Mateus 5:32; 18:8; 25:41). Deus será como um fogo, distinguindo o bom do menos bom (Salmo 17:3; 1 Coríntio 3:15). Sua força, que tudo penetra, purifica também: nesse sentido é que o batismo de Jesus havia de agir como fogo (Mateus 3:11).
Os taoístas penetram nas chamas para se liberar do condicionamento humano, uma verdadeira apoteose, como a de Héracles, que, para se despir do invólucro mortal, subiu a uma fogueira no monte Eta. Mas há os que, como os mesmo taoístas, entram nas chamas sem se queimar, o que faz lembrar o fogo que não queima do hermetismo ocidental, ablução, purificação alquímica, fogo este que é simbolizado pela Salamandra.
O fogo artificial do hinduísmo é substituído por Buda pelo fogo interior, que é simultaneamente conhecimento penetrante, iluminação e destruição do invólucro mortal. O aspecto destruidor do fogo comporta igualmente uma relação negativa e o domínio do fogo é também uma função diabólica. Observe-se, a propósito, a forja: seu fogo é, ao mesmo tempo, celeste e subterrâneo, instrumento de demiurgo e demônio. A grande queda de nível é a de Lúcifer, “o que leva a luz celeste”, precipitando nas fornalhas do inferno: um fogo que brilha sem consumir, mas exclui para sempre toda e qualquer possibilidade de regeneração.
Em muitas culturas primitivas, os inumeráveis ritos de purificação, as mais das vezes, ritos de passagem, são característicos de culturas agrárias. Configuram certamente os incêndios dos campos, que se revestem, em seguida, de um tapete verde de natureza viva. Entre os gauleses, os sacerdotes druidas faziam grandes fogaréus e por eles faziam passar o rebanho para preservá-lo de epidemias. O grande político e excepcional escritor Caio Júlio César (100-22 A.E.C.) nos fala, no B. Gal., 6, 16, 9, de gigantescos manequins, confeccionados de vime, que os mesmos druidas enchiam de homens e animais e transformavam em fogueira.
O Fogo, nos ritos iniciáticos de morte e renascimento, associa-se a seu princípio contrário, a Água. Os chamados Gêmeos de Popol-Vuh do mito maia, após sua incineração, renascem de um rio, onde suas cinzas foram lançadas.
Mais tarde, os dois heróis tornam-se o novo Sol e a nova Lua, Maia-Quiché, efetuando uma nova diferenciação dos princípios antagônicos, fogo e água, que lhes presidiram à morte e ao renascimento. Desse modo, a purificação pelo fogo é complementar da purificação pela água, tanto num plano microcósmico (ritos iniciáticos), quanto num aspecto macrocósmico (mitos alternados de dilúvios, grandes secas e incêndios). Para os astecas, o fogo terrestre, ctônio, representa a força profunda que permite a complexio oppositorum, a união dos contrários, a ascensão, a sublimaçãoda água em nuvens, isto é, a transformação da água terrestre, água impura, em água celestial, água pura e divina. O fogo é, pois, o motor, o grande responsável pela regeneração periódica. Para os bambaras o fogo ctônio configura a sabedoria humana e urânio, a sabedoria divina.
Quanto à significação sexual do fogo, é preciso observar que ela está intimamente ligada à primeira técnica de obtenção do mesmo pela fricção, pelo atrito, pelo vaivém, imagem do ato sexual, enquanto a espiritualização do fogo estaria ligada à aquisição do mesmo pela percussão. Mircea Eliade chega à mesma conclusão e opina que a obtenção do fogo pelo atrito é tida como o resultado, a “progenitura” de uma união sexual, mas acentua, de qualquer forma, o caráter ambivalente do fogo: pode ser tanto de origem divina quanto demoníaca, porque, segundo certas crenças arcaicas, o fogo tem origem nos órgãos genitais das feiticeiras e das bruxas.
Para Gaston Bachelard o “amor é a primeira hipótese científica para a reprodução objetiva do fogo e antes de ser o mesmo filho da madeira, é filho do homem… O método de fricção surge naturalmente. É espontâneo, porque o homem tem acesso a ele por sua própria natureza. Na verdade, o fogo foi surpreendido em nós, antes de ser arrancado do céu…”. Há, consoante o mesmo Bachelard, duas direções ou duas constelações psíquicas na simbologia do fogo, segundo é botido por percussão ou por atrito. No primeiro caso, está intimamente ligado ao relâmpago e à flecha e possui um valor de purificação e iluminação, convertendo-se no prolongamento ígneo da luz. Diga-se, de caminho, que puro e fogo em sânscrito se designam pela mesma palavra: agnih, que é, aliás, um empréstimo do hitita Agnis, em latim ignis, fogo. A esse fogo espiritualizante se prendem os ritos de iniciação, o sol, os fogos de elevação e à luz. Opõe-se, nesse sentido, ao fogo sexual, obtido por fricção, como a chama purificadora se contrapõe ao centro genital da lareira matrilinear, como a exaltação da luz celeste se distingue do ritual de fecundidade agrária. Assim orientado, os simbolismo do fogo dimensiona a etapa mais importante da intelectualização do cosmo e afasta mais e mais o homem de sua condição animal. Prolongando ainda o símbolo nessa mesma direção, o fogo seria o deus vivo e pensante, que nas religiões arianas da Ásia recebeu o nome de Agni e Ator.
Em síntese, o fogo que queima e consome é um símbolo de purificação e regeneração, mas o é igualmente de destruição. Aí se encontra a nova inversão do símbolo. Purificadora e regeneradora a água também o é. Mas o fogo se distingue da água na medida em que ele configura a purificação pela compreensão, até sua forma mais espiritual, pela luz da verdade; a água simboliza a purificação do desejo até sua forma mais sublime, a bondade.
Fonte: “Mitologia Grega”, Junito de Souza Brandão. Editora Vozes, vol. 1, 2002/17ª edição.





segunda-feira, 18 de janeiro de 2016

O inferno de Dante coloca o pai terreno acima do pai celestial


José Reis Chaves

O abuso das interpretações bíblicas, ora alegóricas, ora literais, é a causa principal das confusões doutrinárias da Bíblia que sempre dividiu os povos judaico-cristãos. 
 
Os teólogos antigos interpretavam a Bíblia literalmente. E foi Dante Aliguieri (século XIII) que, em “A Divina Comédia”, retratou bem as ideias erradas deles, principalmente as sobre o inferno bíblico e mitológico “hades”. A Igreja se libertou desse inferno exotérico ou literal. Hoje, ela interpreta-o de modo esotérico ou figurado, como deve ser. Mas, infelizmente, nossos irmãos evangélicos, que estão uns cem anos atrás da Igreja em questões bíblico-teológicas, continuam defendendo ainda aquelas mesmas ideias medievais erradas católicas sobre o inferno. E perguntamos quem sabe mais de Bíblia e de teologia, os teólogos antigos ou os atuais?

Os termos grego “aionios”, hebraico “ôlam” e o latino “aeternus” significam tempo longo e indefinido, e não eterno ou sem fim como se passou a entender na sua tradução para o português. Tempo sem fim seria em grego “áidios”, e em latim “sempiternus” (sempiterno). E a hermenêutica nos ensina que as traduções dos textos antigos devem seguir o significado das palavras da época em que eles foram escritos. 

E quem, primeiramente, chamou a atenção para esse erro de tradução da Bíblia não foram os teólogos mergulhados nos seus enganos, mas os cientistas iluministas europeus do século XIX. E contra a ciência, em vão, reagem pastores evangélicos conservadores, com seus argumentos insustentáveis. E credite neles quem quiser!

E vamos ver alguns textos bíblicos que nos comprovam que a eternidade do inferno é mesmo um tempo indefinido (“ôlam”, “aionios” e “aeternus”). Aliás, até os anjos têm suas fases de eternidades evolutivas: querubins, serafins e arcanjos.
 
Mas antes afirmamos que aceitamos somente em parte as teses bíblicas do Seminário de Jesus, que ensina que é verdade apenas 18% do que diz a Bíblia que Jesus disse. Não podemos atribuir a Deus tudo dela, porque ela tem coisas de espíritos atrasados que foram tomados como sendo do Espírito do próprio Deus: 

“Bendito seja o Senhor Deus de Israel, ‘de eternidade a eternidade’...” (16: 36); “...Bendito és tu, ó Senhor, Deus de nosso pai Israel, ‘de eternidade em eternidade’...” (1 Crônicas 29: 10); “Mas a misericórdia do Senhor é ‘de eternidade em eternidade’ sobre os que o temem...” (Salmo 103: 17); “...Levantai-vos, bendizei ao Senhor vosso Deus ‘de eternidade em eternidade’...” (Neemias 9: 5); “...Bendito seja o Senhor, Deus de Israel, ‘de eternidade em eternidade’...” (Salmo 106: 48); “...Onde está, ó inferno, a tua destruição? Meus olhos não veem em mim arrependimento algum” (Oseias 13: 14); e “Não deixarás minha alma no inferno” (Salmo 15: 10).

Os textos bíblicos citados por si mesmos demonstram que o tal de inferno é mesmo de tempo indefinido, como o é o purgatório da Igreja elogiado por Kardec.

Se só um espírito se perdesse irremediavelmente, Deus teria falhado em seu projeto, e teríamos, pois, que admitir que “entrou um vírus, o diabo, no computador divino”! 

Se existisse mesmo o tal de inferno de Dante, ainda aceito por muitos cristãos, teríamos o absurdo de que os pais terrenos amam mais seus filhos do que o Pai Celestial!

terça-feira, 12 de janeiro de 2016

Como lidar com os anjos e os demônios interiores

Leonardo Boff

O ser humano constitui uma unidade complexa: é simultaneamente homem-corpo, homem-psique e homem-espírito. Detenham-nos no homem-psique, vale dizer, no seu mundo interior, urdido de emoções e paixões, luzes e sombras, sonhos e utopias. Como há um universo exterior, feito de ordens-desordens-novas ordens, de devastações medonhas e de emergências promissoras, assim há também um mundo interior, habitado por anjos e demônios. Eles revelam tendências que podem levar à loucura e à morte e a energias que nos podem trazer realização e felicidade.

Como observava o grande conhecedor dos meandros da psique humana C. G. Jung, a viagem rumo ao próprio centro pode ser mais perigosa e longa do que a viagem à Lua e às estrelas.

Há uma questão nunca resolvida satisfatoriamente entre os pensadores da condição humana: qual é a estrutura de base de nossa interioridade, de nosso ser psíquico? Muitas são as intérpretes.

Sustentamos a tese de que a razão não comparece como a realidade primeira. Antes dela há todo um universo de emoções que agitam o ser humano. Acima dela há inteligência, pela qual intuimos a totalidade, nossa abertura ao infinito e o êxtase da contemplação do ser. As razões começam com a razão. A razão mesma é sem razão. Ela simplesmente está aí, indecifrável.

Mas ela remete a dimensões mais primitivas da realidade humana, das quais se alimenta e que a perpassam. A razão pura kantiana é uma ilusão. A razão sempre vem impregnada de emoção, fato aceito pela moderna epistemologia. A cosmologia contemporânea inclui na ideia do universo não apenas energias, galáxias e estrelas, mas também o espírito e a subjetividade.

Conhecer é sempre entrar em comunhão interessada e afetiva com o objeto do conhecimento. Tenho sempre sustentado que o estatuto de base do ser humano não reside no cogito cartesiano (no eu penso, logo sou), mas no sentido platônico-agostiniano (no eu sinto, logo existo), no sentimento profundo. Este nos põe em contato com as coisas, percebendo-nos parte de um todo maior, sempre afetando e sendo afetados. Mais que ideias e visões de mundo, são os sentimentos, o amor e seus contrários, que nos movem.

A razão sensível lança suas raízes no surgimento da vida, há 3,8 bilhões de anos, quando as primeiras bactérias irromperam e começaram a dialogar quimicamente com o meio para sobreviver. Esse processo se aprofundou a partir do momento em que surgiu o cérebro lambisco dos mamíferos, há mais de 125 milhões de anos, portador de cuidado e amor pela cria. É a razão emocional que alcançou o patamar autoconhecimento e inteligente com os seres humanos, pois também somos mamíferos.

O pensamento ocidental é logocêntrico e antropocêntrico e sempre colocou sob suspeita a emoção por medo de prejudicar a objetividade da razão. Em alguns setores da cultura, criou-se uma espécie de lobotomia, quer dizer, uma grande insensibilidade face ao sofrimento humano e aos padecimentos pelos quais tem passado a natureza e o planeta.

Nos dias atuais, nos damos conta da urgência de, junto com a razão intelectual irrenunciável, incluir a razão sensível e cordial. Se não voltarmos a sentir com afeto e amor a Terra como nossa Mãe e nós, como a parte consciente e inteligente dela, dificilmente nos moveremos para salvar a vida, sanar feridas e impedir catástrofes.

Ninguém nos poderá substituir. Somos condenados a ser mestres e discípulos de nós mesmos.